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quinta-feira, dezembro 15, 2005

«Não se irrite»

«Você não tinha o direito de me roubar esse beijo», grita a escrava Isaura na televisão. Os óculos fundo de garrafa de uma velhota gorda olham para o écran, num dos cantos da sala de espera. As outras pacientes olham para o nada, algures entre o pensativo e a resignação.
Dona Maria inclui-se no último grupo. Mais de 70 anos e cabelos completamente brancos, há três meses que tinha pedido uma consulta marcada para as 15 horas daquele dia. Sessenta minutos antes já estava naquele edifício de três andares com as paredes interiores forradas a azulejos de casa-de-banho, mas que por fora parece igual a tantos outros desta cidade-subúrbio com mais de 70 mil habitantes. Um cartaz na sala de espera sugere: «Preserve a vida; Não se irrite».
Dona Maria não está irritada, apesar de durante meses ter tentado várias vezes marcar uma consulta para o próprio dia, ligando, como pedem os responsáveis, a partir das 9 da manhã para um dos quatro números de telefone do centro de saúde. Ao fim de 45 minutos a ouvir um toque acelerado do outro lado da linha, alguém acabava por atender o telefone. E a resposta era sempre a mesma: «Já não há vagas».
Mas a médica é «muito boa», garante a septuagenária: «passa as receitas sem data e não preciso de vir cá tantas vezes», contínua D. Maria, para explicar logo de seguida que já lhe tiraram um peito e agora espera que lhe tirem o outro. Antes da hora marcada, as colunas dizem o seu nome. A consulta é interrompida várias vezes por colegas que entram de rompante no consultório a perguntar como correram as férias da médica.
Vinte minutos depois, D. Maria sai e volta para o balcão de atendimento do centro de saúde. Nas mãos, um molho interminável de receitas para carimbar. À sua frente, o caos de velhos, velhas e algumas mães, à procura das senhas numeradas de atendimento que entretanto se esgotaram.